terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Mare Nostrvm

Roma e a conquista do Mediterrâneo


Galera romana com legionários (Sécs. II-I a.C.).

Até o momento em que ostensivamente Roma e Cartago começaram a se confrontar (Século III a.C.), aquela debitava sua expansão ao crescente poderio militar terrestre, provado e aprovado nos dois séculos anteriores de escaramuças com demais povos peninsulares e limítrofes, resultantes na completa dominação da Península Itálica.

Ainda que não exclusivamente agrícola, Roma era uma nulidade naval, que se sustentava no comércio e na exploração das colônias. Ao contrário, Cartago – antiga colônia fenícia fundada no Século VII a.C. – era uma incontestável potência marítima e formidável entreposto comercial, que controlava o Mediterrâneo ocidental (aí incluído o Norte da África) valendo-se de uma poderosa esquadra e um eficiente exército mercenário. Expandia Roma seu poder terrestre; Cartago o fazia no espaço mediterrâneo. As duas cidades-estado equivaliam-se, talvez com vantagem para a última.

O confronto era inevitável. Tratados de delimitação de zonas econômicas, com feitio de modus vivendi, mal disfarçavam a crescente desconfiança entre as duas potências; faltava a ocasião para obviar a animosidade. Ora, Cartago vinha mantendo há tempos uma guerra intermitente com as cidades gregas na Sicília – especialmente Siracusa –, que a certo momento pediram que a República acudisse em seu favor. Roma o faria: mas os deuses emprestam, quando dão. Assim, em 264 a.C., começa a primeira das Guerras Púnicas (de poeni, “fenício”, ocorrentes entre Roma e Cartago, num total de três): Roma pretextou sair em defesa das cidades sicilianas, a despeito de sequer possuir uma esquadra, o que dificultava o transporte de soldados à Sicília, tanto quanto deixava desprotegidos portos continentais, que quedavam à inteira mercê das incursões cartaginenses.


Faber navalis lavrada em estela funerária.

Tampouco isso terá parecido ao pragmático Senado romano – base da República – um problema: por sua ordem, e com financiamento privado, armadores gregos e fenícios, gentes com muitos séculos de tradição naval – a faber navalis –, são contratados aos estaleiros romanos para literalmente criar uma esquadra latina; tamanho é o esforço que, a se crer nos inacreditáveis cronistas da época, sessenta dias após o corte das árvores nada menos que cento e vinte naus já se tinham feito ao mar...


Navio de Guerra romano (mosaico tunisiano, Séc. IIId.C.)

Vinte e três anos (264 – 241 a.C.) medearam o início da deflagração das primeiras hostilidades navais romano-cartaginenses e seu desfecho. Anos pendulares: Roma protagonizou vitórias em batalhas espetaculares – como a obtida em Mylae, a nordeste da Sicília (260 a.C.) – mas também sofreu terríveis revezes, seja por tempestades que destroçaram sua frota (255, 253 e 249 a.C.), seja por erros estratégicos variados, em que a sorte ou a competência fizeram a vitória oscilar para o lado de Cartago.

Pouco importa: em 241 a.C. Netuno ditou seu veredito. Não sem pesadas baixas, a Sicília foi então completamente arrebatada aos cartaginenses; Roma apresentou sua fatura fazendo da ilha sua primeira província (227 a.C.), inaugurando uma unidade administrativa que seria o protótipo da administração imperial. Do lado cartaginense, ascendia à notoriedade, pela forma esplendorosa de combater, o general Amílcar Barca, “o Luminoso” (“relâmpago”, em púnico). Já em 247 a.C. – ano em que esteve na campanha malograda da Sicília –, seu filho, Aníbal, tinha vindo à luz; mas o glorioso destino deste último ainda estava por vir. Agora era a hora de Amílcar.

Nos vinte e três anos em que vigeu o velado armistício entre as duas potências, Roma arrebatou inapelavelmente a Sardenha e a Córsega, até então possessões cartaginenses. O Tirreno passava a ser domínio romano; a esquadra romana ainda deu-se ao luxo de reprimir com sucesso a pirataria no Adriático. Cartago, de sua vez – diga-se, Amílcar –, tomou a costa espanhola e fincou com isso um novo bastião ocidental cartaginense. O Mediterrâneo era rifado mais uma vez; os romanos mal tiveram tempo de reagir – apenas de sabê-lo. A próspera exploração de prata na Espanha reergueu Cartago. Chegara a vez de Aníbal Barca, que a aproveitaria de modo espetacular.

As embaixadas romanas que visitaram Cartago para propor áreas de exploração exclusiva foram inúteis: os generais da cidade norte-africana sabiam que não haveria indulgência por parte de Roma, e, mais, queriam a desforra. Dando início à segunda Guerra Púnica, em 218 a.C. Aníbal liderou o exército cartaginense a partir da Espanha, cruzando o sul da Gália e depois os Alpes com sessenta mil homens, dez mil cavalos e quase quarenta elefantes.

Por três vezes, Roma foi batida por Aníbal, general de Cartago: Trebia (218 a.C.), lago Trasimeno (217 a.C.) e finalmente Cannae (216 a.C.), onde oito legiões foram aniquiladas (quarenta mil legionários, e a mesma quantidade de aliados, contra cinquenta mil comandados por Aníbal) – a mais retumbante derrota da história da República. Frente a um inimigo tão audacioso, os romanos, como de costume, molestaram os oráculos, enviando uma comitiva a Delfos; a resposta oracular da Sibila foi a de enterrar vivos dois gregos e dois gauleses no mercado de Roma, o que, claro, foi escrupulosamente cumprido.

Deu certo: na Macedônia, cidades gregas negaram apoio a Aníbal, e o exército romano foi aos poucos reconquistando posições. Finalmente, na batalha de Zama, já na África (202 a.C.) – onde dois grandes gênios militares, Aníbal e Cipião o Africano, finalmente negociaram e guerrearam cara-a-cara –, os cartaginenses, atropelados pelos seus próprios elefantes e órfãos de uma cavalaria, capitularam.

Roma tomou as possessões cartaginenses na Península Ibérica – o que lha custaria, pela insubmissão dos autóctones, a presença constante de quarenta mil legionários, primeiro exército permanente romano – e ainda confiscou a esquadra de Cartago. Os temíveis elefantes também foram entregues, junto com a promessa de Cartago de não mais guerrear na África.

Mas era tarde demais: agora, era questão de extermínio. Na última das Guerras Púnicas (149-146 a.C.), Roma avançou sobre Cartago com oitenta mil homens, que literalmente reduziram a antes orgulhosa cidade africana a pó. As terras onde até então se erguia Cartago foram divididas entre os invasores e se tornaram uma mera província romana; quarenta mil cartaginenses foram feitos escravos.

A completa destruição de Cartago abriu caminho para que Roma dominasse inteiramente o Mediterrâneo, ocidental – Península Ibérica e Gálias – e oriental – Ásia Menor, Grécia e Macedônia. Os romanos passaram a chamar aquele mar, orgulhosamente, de “Mare Nostrvm”; as galeras cartaginenses arrecadadas do derradeiro enfrentamento assomaram às setecentas galeras da Classis Romana, a poderosa esquadra latina. Estas gigantescas mudanças dominiais ocasionaram uma profunda transformação em Roma: a conquista do Mediterrâneo seria um dos ingredientes que levaria ao ocaso da República e propiciaria a aparição do Império Romano.

No período do Império, o poder romano chegou a sua máxima expansão, quando controlou todas terras perimetrais do Mediterrâneo, ocupando uma área com cerca de 60 milhões de habitantes.

Fontes: www.officinaartium.org / www.dec.ufcg.edu.br

Nenhum comentário: