O ex-escravo colocou em risco o poder do império durante os três anos de uma rebelião com milhares de comandados que abalou a Itália
Um exército dos mais improváveis virou de pernas para o ar o coração do Império Romano, cerca de 70 anos antes do nascimento de Cristo. Embora fosse inteiramente formada por escravos, a imensa maioria deles sem nenhuma experiência militar, essa força rebelde chegou a contar com 90 mil soldados, deu um trabalho imenso aos principais comandantes de Roma e chegou perto de engendrar o colapso político e econômico da Itália. À frente dos revoltosos estava um ex-gladiador, um gênio militar nato, apesar da origem aparentemente humilde. Seu nome era Spartacus.
Mais de 2 mil anos depois, os detalhes da vida e personalidade desse guerreiro foram quase totalmente engolidos pela lenda. Para os antigos historiadores gregos e romanos, ele não passava de um bandido, enquanto teóricos socialistas e revolucionários de todos os tipos o transformaram num herói quase sobre-humano. Calúnias ou idealizações à parte, o fato é que a história de Spartacus e seu exército mostram à perfeição como a enxurrada de escravos que havia inundado o Império Romano criou um desequilíbrio social de proporções bíblicas. Sem saber, os romanos tinham plantado a semente de seu próprio pesadelo, embora, no fim das contas, tenham conseguido acabar com ela.
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A revolta de Spartacus só se tornou possível porque Roma, nos dois séculos anteriores ao nascimento do guerreiro, havia se tornado a senhora (quase) absoluta da bacia do Mediterrâneo. Numa série de conquistas, envolvendo basicamente o império de Cartago e as regiões dominadas por macedônios e gregos, Roma incorporou vastos territórios, muitos deles ricos em solos férteis e recursos agrícolas. Além disso, havia um bônus: no mundo antigo, os derrotados nas guerras tradicionalmente se tornavam escravos.
Depois de vencer meio mundo em batalha, Roma deixou de ser uma civilização formada basicamente por homens livres e pequenos proprietários de terra para se tornar a dona de uma multidão de escravos. Algumas estimativas modernas sugerem que, na época, havia um escravo para cada três pessoas livres. O problema, porém, não era só esse desequilíbrio demográfico: a mão-de-obra servil favoreceu os grandes proprietários de terra, que passaram a adquirir as pequenas propriedades dos camponeses livres por meios legais ou ilegais. Assim, a zona rural da Itália estava lotada de “sem-terra” e pequenos agricultores empobrecidos e encurralados – um fator que acabaria favorecendo Spartacus e seus comandados. Nas três ou quatro décadas que precederam a revolta do gladiador, a situação explosiva criou outros levantes no campo italiano, em especial na recém-conquistada Sicília.
Embora a principal vantagem econômica de incorporar tantos escravos ao império fosse seu emprego na agricultura, havia um contingente, digamos, diferenciado de cativos. Alguns se tornavam servidores domésticos ou, no caso de certas mulheres, literalmente escravas sexuais de seus amos. Mas entre os mais apreciados pelos romanos estavam os escravos destinados às lutas de gladiadores, uma das formas mais populares de entretenimento público no império. As lutas, ou ludi (“jogos”, em latim), como eram mais conhecidas na época, quase sempre comemoravam grandes triunfos militares. Os que tomavam parte dos combates nem sempre recebiam treinamento especial. No entanto, lutadores com potencial para conquistar as multidões eram muito procurados e logo eram incorporados a academias especiais, onde eram treinados e recebiam até certa dose de regalias.
Foi justamente num estabelecimento desses, mantido por um sujeito chamado Lentulus Batiatus, em Cápua, sul da Itália, que Spartacus e seus companheiros originais viviam. Segundo o historiador grego Plutarco, que escreveu seu relato no século 2 d.C., “a maioria deles era de origem gaulesa ou trácia. Esses homens não haviam feito nada de errado, mas, simplesmente por causa da crueldade de seu amo, eram mantidos em confinamento até que chegasse a hora de entrarem em combate”. (A referência a “não fazer nada de errado” tem a ver com o fato de que criminosos condenados às vezes também eram mandados para a arena.) Como sempre, fica óbvio que os historiadores do mundo antigo não faziam muito bem, sua lição de casa: as designações “gauleses” (ou seja, nativos da Gália, na atual França) e “trácios” (originários da Trácia, região que corresponde a partes da Grécia e Bulgária atuais) podem não indicar a origem geográfica, mas o tipo de “modalidade” gladiatorial que os homens de Batiatus praticavam.
Seja como for, a maioria dos autores greco-romanos diz que Spartacus era um nativo da Trácia. Para Apiano, escritor contemporâneo de Plutarco e originário de Alexandria, no Egito, ele teria lutado contra os romanos e feito prisioneiro – os trácios eram famosos por seu espírito de luta e, em certo sentido, até selvageria. Plutarco acrescenta, já criando uma aura mítica em torno do gladiador: “Dizem que, quando o levaram a Roma para ser vendido, uma serpente foi vista enrolando-se em torno da cabeça dele enquanto dormia. Sua mulher, que pertencia à mesmo tribo e era uma profetisa, submetida ao êxtase do deus Dioniso, declarou que esse sinal significava que ele teria um poder grande e terrível, o qual, no final, iria levá-lo ao infortúnio”. A história tem toda a cara de ser uma invenção de Plutarco, já que na tradição grega os trácios é que teriam levado o culto de Dioniso para o resto do Mediterrâneo.
Quebrando tudo
Verdade ou mentira, o fato é que Spartacus tinha pelo menos uma virtude: a iniciativa. No ano 73 a.C., ele se tornou o cabeça de uma fuga envolvendo 78 escravos, que se armaram com facas de cozinha e qualquer outro instrumento cortante à vista e deram o fora da tal “academia”. Segundo o mesmo Plutarco, o grupo deu a sorte de cruzar com um carregamento de armas para gladiadores que se dirigia para outra cidade e capturá-lo, o que aumentou suas chances de resistir à eventualidade de um ataque.
Os gladiadores, que tinham como líderes, além de Spartacus, dois sujeitos conhecidos como Crixus e Oenomaus (supostamente gauleses, embora a classificação também seja duvidosa), se refugiaram no cume do vulcão Vesúvio. Puseram-se a atacar e pilhar as propriedades rurais vizinhas, atraindo mais e mais escravos fugitivos para seu lado. Mas não só cativos: pastores e camponeses pobres da região também começaram a se unir em massa ao chefe gladiador.
As autoridades romanas demoraram para se dar conta da gravidade da situação. Basta dizer que sua primeira tentativa de acabar com a rebelião foi mandar contra Spartacus uma força de 3 mil homens que tinham acabado de entrar para o exército e não tinham treinamento algum. Seu líder, Caio Cláudio Glaber, se limitou a montar seu acampamento bloqueando a trilha que levava para fora do Vesúvio, achando que conseguiria fazer os gladiadores se render pela fome. Segundo relatos da época, porém, o vulcão tinha seu topo coberto por videiras selvagens, que Spartacus e seus companheiros usaram para tecer cordas, com as quais desceram pelo outro lado da montanha. Atacaram Glaber por trás e aniquilaram seu exército de novatos.
Depois dessa primeira grande vitória do gladiador, muitos de seus seguidores decidiram marchar para o norte com a intenção de deixar a Itália e voltar para seus países de origem. Enquanto isso, o governo romano resolveu agir e mandou contra Spartacus duas legiões – cerca de 12 mil homens – comandadas pelos dois cônsules, os chefes de governo da república. Parte do exército de escravos, liderado por Crixus, se separou de Spartacus e acabou dizimada, mas o líder rebelde conseguiu derrotar ambas as legiões.
No fim, os revoltosos (com 90 mil pessoas em seu grupo) chegaram aos Alpes. Mas parte dos homens queria continuar a viver de pilhagem, o que os levou a voltar a Itália. O governo de Roma deu então o comando de dez legiões a Crasso e convocou o herói de guerra Pompeu. Os dois encurralaram Spartacus no sul da Itália. O gladiador e seus homens ainda venceram batalhas. Durante uma delas, o gladiador atacou Crasso e morreu em combate com milhares de seus homens. Outros 6 mil escravos foram crucificados na estrada que ia de Roma a Cápua – a Via Ápia.
Dois filmes sobre Spartacus
O clássico
Com a direção de Stanley Kubrick, responsável por outros clássicos, como 2001: uma Odisséia no Espaço, esse filme, de 1960, é provavelmente a principal fonte da fama do líder escravo nos dias de hoje. Dirigida com todo o capricho técnico dos épicos de Hollywood da época, a obra segue à risca a receita do cinemão, até dando ao herói, interpretado por Kirk Douglas, uma paixão pela bela escrava Varínia. O Spartacus do filme é um lutador típico, que quer libertar todos os escravos do império.
O enlatado
Como no ramo nada se cria nos últimos tempos, produtores norte-americanos decidiram fazer, em 2004, uma minissérie para a TV com base no filme de Kubrick. Que essa é a fonte original de Spartacus está na cara pela presença da bela Varínia mais uma vez (um personagem nunca registrado historicamente). De quebra, o herói, encarnado pelo ator croata Goran Visjnic, come o pão que o diabo amassou, trabalhando no deserto egípcio antes de virar gladiador. O que, aliás, lembra outro famoso gladiador do cinema...
Treinamento básico de um soldado
A principal diferença entre as legiões do exército romano e boa parte dos povos que enfrentava em batalha era este detalhe decisivo: a disciplina. Ao menos durante a fase áurea do império, quem ingressava numa legião sabia estar aceitando um período extenso e exclusivo de serviço militar, com duração de 25 anos. O coração das legiões era a infantaria, que era treinada para lutar de forma ao mesmo tempo coesa e flexível. As duas principais armas do legionário eram o pilo, uma lança curta que era arremessada assim que o combate começava, e o gládio, uma pequena espada para o duelo corporal. Uma sacada tecnológica simples tornava o pilo especialmente importante: se ele atingisse o escudo do inimigo, sua ponta se dobrava para dentro e ele ficava enganchado, o que levava a pessoa sob ataque a ter de se livrar do escudo. Além do treinamento para manobras como essa, os soldados romanos também estavam acostumados a carregar mais de 30 kg de seu próprio equipamento em marchas forçadas durante as viagens.
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