Vercingetorix cruzou a história como um meteoro. Sua principal epopéia durou apenas nove meses do ano de 52 a.C.. Ela foi narrada no último livro de César sobre sua conquista das terras onde hoje existe a França, a Guerra das Gálias. Muitos séculos depois, esse chefe gaulês se transformaria em um mito fundador da história francesa, e depois em ícone mundial, ao servir de inspiração para o personagem de história em quadrinhos Asterix.
O historiador latino Florus descreveu o líder gaulês como “aterrorizante por seu aspecto físico, por suas armas e por seu caráter”. Para o grego Dion Cassius era “impressionante por seu tamanho e por suas armas”. Nesses dois retratos estereotipados, reconhecemos o lugar-comum da Antigüidade clássica sobre os gauleses: todos eram grandes e assustadores. E loiros, de pele branca, cabelos longos, bigode, comiam e bebiam muito, enfim, verdadeiros gauleses de quadrinhos! O único que viu Vercingetorix e que poderia fazer uma descrição física apropriada foi César. Mas este preferiu falar sobre seu caráter.
Vercingetorix possuía um imenso carisma e grande eloqüência: não desprezava a demagogia, que era a maneira pela qual convencia sua assistência como bem entendia. Possuía um autêntico gênio militar, e um instinto impressionante para compreender e neutralizar a estratégia do inimigo. Um adversário digno de César que poderia ter mudado o destino da guerra em favor da rebelião gaulesa. Vercingetorix também parecia desprovido de qualquer escrúpulo ou senso moral. Em muitas ocasiões fingiu, mentiu para suas próprias tropas ou para seus aliados; e agiu, contra inimigos e companheiros de armas, com uma crueldade e desprezo pelo outro que só tinha como possível justificativa a eficiência militar. Naturalmente, a guerra nunca foi parecida com o mundo colorido dos quadrinhos. E é claro que se César reconhecia o valor do adversário, tinha interesse em ressaltar os traços negativos de sua personalidade.
Assim o general romano o apresenta: “Vercingetorix, filho de Celtillos, arverno, jovem de classe social muito elevada; seu pai obteve a primazia sobre toda a Gália e isso lhe valeu, por aspirar à realeza, ser assassinado por seu povo”. O povo arverno tinha dominado a Gália, porém, depois que os belgas, ao norte, e os romanos, ao sul, tomaram muitos dos seus vassalos, e de mais de 100 miguerreiros terem sido mortos pelos romanos, perdeu muito de sua influência e se confinou em Limagne, no coração de sua fortaleza. Esse recuo do poder arverno, ocorrido no tempo do avô de Vercingetorix, foi acompanhado pela supressão da realeza em favor de uma república de notáveis, de senhores feudais que César chamou de “cavaleiros”. Quando seu pai, que pertencia a essa classe nobiliária, tentou ressuscitar a realeza em seu proveito, foi executado por seus pares, entre 70 e 60 a.C. Em 52 a.C., Vercingetorix era, segundo César, adulescens, tinha entre 20 e 30 anos. Portanto, devia ter pouco mais de 10 anos quando seu pai foi assassinado.
Antes da luta contra os romanos, uma amizade ligava Vercingetorix a César. O gaulês serviu sob as ordens do general, em um dos contingentes fornecidos pelos povos aliados de Roma. Lutaram juntos, sem dúvida tempo suficiente para que Vercingetorix aprendesse táticas do exército romano. Não há registro do momento em que ele “traiu” César, nem a razão.
Segundo César, Vercingetorix tentava mobilizar os arvernos para que se unissem à rebelião dos povos da Céltica, que massacrou os comerciantes romanos instalados na Gália.
DRUIDAS
A fraqueza da Gália estava na sua incapacidade de se mobilizar como um todo, na falta de uma consciência nacional. Os sacerdotes druidas apareciam como os únicos capazes de reunir sob sua autoridade moral os turbulentos povos da Gália. Eram a alma, o cérebro e o nervo da rebelião de 52 a.C. Vercingetorix, por um lado, se colocava como braço armado dos druidas. Por outro, tomou o poder na sua cidade, e à custa de uma guerra civil se atribuiu o título de rei, tendo sucesso onde o pai fracassou. E atacou povos vizinhos, para restaurar a antiga supremacia dos arvernos na Gália.
À frente da coalizão gaulesa, seu maior objetivo era a libertação do jugo romano. Uma série de fracassos nas batalhas contra as forças de César o obrigou a mudar de estratégia. Começou uma tática de terra arrasada, destruindo colheitas, fazendas, burgos e cidades, com o objetivo de expulsar os romanos da região no inverno. Vercingetorix acreditava que os enfraqueceria, cercando-os para quando estivessem no final das suas forças, lançar um ataque devastador. Na Gália, poupou só Avacarium, uma cidadela com fama de inexpugnável.
Mas César se adiantou e atacou primeiro, tomando Avacarium. Por meio de uma imensa rampa de acesso, enviou seus legionários durante a noite, sob uma chuva incessante, e se apoderou da cidade. A primavera chegou e o exército romano pôde refazer suas forças graças às provisões encontradas na cidadela. Vercingetorix mudou novamente de estratégia. No lugar de vigiar de fora dos muros o esgotamento dos romanos para poder atacá-los, ele se fechou em outra cidade, Gergóvia, com o principal de suas forças, no início do verão. Esse local era mesmo inexpugnável, e César descobriu isso ao lançar um ataque e perder o efetivo de uma legião.
Essa vitória teve uma imensa repercussão na Gália. Foi a primeira vez que um gaulês conseguiu derrotar um exército romano. Muitos povos aderiram à rebelião, a começar pelos éduos da Borgonha. A Província (a Gália romana do sul) estava ameaçada. César não teve escolha: reuniu todo seu corpo expedicionário e se dirigiu para o sul a fim de proteger as possessões. Nunca o sonho de independência esteve tão próximo de se concretizar.
Contra dez legiões enfileiradas que se estendiam por quilômetros, Vercingetorix lançou a formidável cavalaria pesada gaulesa, capaz de penetrar nas linhas inimigas já dizimadas pelas flechas dos seus arqueiros. Foi então que César deferiu seu “golpe secreto”: a cavalaria germânica, que ele acabara de recrutar como tropas mercenárias. Sob seu ataque selvagem, os gauleses, desorientados, cederam e, em desordem, se retiraram para o local mais próximo: Alésia.
Alésia era a capital de um pequeno povo vassalo dos arvernos, os mandúbios. Era uma poderosa fortaleza e um local santo da Gália. César começou a cercar Alésia, fazendo com que seus soldados trabalhassem na construção de defesas 24 horas por dia. Após uma tentativa fracassada de escapar, Vercingetorix, no início de agosto, se fechou na cidade com provisões para 30 dias. Depois, fez com que toda sua cavalaria, inútil no caso de um cerco, escapasse durante a noite, com ordem de fazer um recrutamento em massa por toda a Gália. O plano era que o exército de César, encurralado entre os sitiados e a onda do exército de reforço, fosse exterminado. César percebeu a estratégia e dobrou suas defesas, dessa vez para o exterior de seu dispositivo. Estava cercado, mas preparado.
O exército de socorro chegou tarde demais. Apresentou-se diante das linhas romanas somente em 20 de setembro, quando os sitiados, desesperados, consideravam a possibilidade de recorrer ao canibalismo para sobreviverem. Os 250 mil homens, somados aos 50 ou 60 mil guerreiros de Alésia, deveriam vencer facilmente os 70 mil romanos. Mas estes estavam enterrados nas linhas de defesa, perigosamente mortais. Possuíam uma artilharia de catapultas eficiente, e soldados unidos na dura disciplina romana, sob o gênio militar de César. Do outro lado, os sitiados enfraquecidos pela desnutrição, e os reforços compostos na maioria por camponeses mal armados e mal treinados, pouco motivados a lutar tão longe de casa por uma causa incerta. Vercingetorix, isolado na fortaleza sitiada, não comandou o exército que veio tentar salvá-lo. Impotente, presenciou, do alto das muralhas, à sua derrota.
Os reforços gauleses realizaram três ataques em quatro dias contra as defesas romanas. O primeiro foi um ataque de cavalaria que foi vencida pelos germânicos de César. No dia seguinte, todo o exército gaulês atacou as linhas romanas que quase sucumbiram, não fosse pela presença de espírito de dois tenentes de César – um deles era Marco Antônio – que cobriram as brechas com tropas transferidas de outros pontos. O último ataque, o mais inteligente, colocou em confronto uma posição exposta do dispositivo romano e uma ação de comando de guerreiros de elite gauleses, enquanto o resto do exército fazia pressão sobre as linhas romanas. César, com seu manto púrpura de general, foi obrigado a intervir pessoalmente para libertar sua posição. Em seguida, o exército romano atacou os gauleses, que debandaram. Sob um luar fatal, a cavalaria de César contra-atacou massacrando os fugitivos.
No dia seguinte, Vercingetorix convocou a assembléia. Observou que ele não iniciara essa guerra para satisfazer uma ambição pessoal, mas pela liberdade de todos. Como era preciso ceder ao destino, ele se ofereceu. Enviaram uma delegação a César para tratar desse assunto. Este ordenou que entregassem as armas e lhe trouxessem os chefes. César estava nas trincheiras, à frente do campo de batalha. Entregaram Vercingetorix e depuseram as armas.
PRISÃO EM ROMA
O que se destaca claramente no relato é que Vercingetorix foi entregue por seu próprio estado-maior, que obedeceu a um ultimato de César exigindo a rendição total, incondicional. Por que César insistiu em ter Vercingetorix vivo? Para fazê-lo desfilar em seu triunfo. Era um costume romano que os chefes vencidos estivessem presentes, junto com o butim tomado do inimigo, no momento da cerimônia triunfal que consagrava a glória do general vencedor, atravessando Roma em um carro pomposo com suas tropas até o Capitólio. É o que aconteceria a Vercingetorix seis anos mais tarde, em setembro de 46 a.C.
Entre a captura e a exibição como troféu em Roma, Vercingetorix apodreceu na velha prisão de Tullianum. Escavada na rocha calcária da colina do Capitólio, era uma prisão úmida, sem luz ou ventilação. Podemos imaginar o estado de degradação do homem que a multidão veria desfilar para o triunfo de César: um farrapo humano lívido e esquelético, piscando incessantemente sob o sol de Roma. Depois disso, de acordo com a tradição, ele seria enforcado e jogado aos corvos e aos ratos.
Os franceses preferem guardar dele a imagem do unificador efêmero da Gália, do rival militar de César. Curiosamente, os historiadores romanos também: as versões tardias de sua rendição revelam isso. Em contrapartida, não temos indício de que ao menos uma das revoltas gaulesas que se seguiram, durante meio século, tenha sido em sua memória. Era como se Vercingetorix tivesse sido mais popular entre os romanos, que sempre reconheceram o valor de seus adversários, do que entre seus compatriotas, que provavelmente viram nele um aventureiro. Não havia na Gália o menor sentimento “nacional”. Além disso, os benefícios da paz romana, que se estenderam durante pelo menos quatro séculos, começaram a dar seus frutos, com o nascimento da civilização galo-romana. Três gerações após a conquista, os netos dos chefes gauleses que combateram em Alésia receberam do imperador Cláudio o título de cidadãos romanos.
Só no século XVI nasceu a idéia de que os gauleses eram os ancestrais dos franceses, e não os francos, e só na metade do século XIX reapareceu na história Vercingetorix. “O inventor” do mito foi Napoleão III. As escavações que ele conduziu nas supostas localizações de Gergóvia e de Alésia beneficiadas por vasta divulgação, trouxeram à tona a epopéia militar e nacional do chefe arverno.
Nascia Vercingetorix, como o primeiro herói histórico da nação francesa. O seu mito serviu para o patriotismo de uma França voltada para seus valores ancestrais, a ponto de transformar a imagem do guerreiro derrotado em Asterix, encarnação de certo “espírito francês”: irônico, belicoso e rabugento. E que, supostamente, nunca se rende.
CRONOLOGIA
101 a.C.
Nascimento de César
Por volta de 80 a.C.
Nascimento de Vercingetorix
Por volta de 70-60 a.C.
Assassinato do pai de Vercingetorix, Celtill Celtillos
58 a.C.
Início da guerra das Gálias
58-57 a.C.
Vercingetórix no exército de César
52 a.C.
Batalhas de Avaricum, da Gergóvia e Alésia
46 a.C.
Marcha do triunfo de César e execução de Vercingetorix
44 a.C.
Assassinato de César
A VILA GAULESA QUE RESISTIU A ROMA
Na vila dos quadrinhos de Asterix, os gauleses sempre vencem os romanos, e Júlio César é um atrapalhado líder em vez do general brilhante que comandou as legiões romanas. Asterix foi criado em 1959, pelo desenhista Albert Uderzo e pelo escritor René Goscinny e é o mais famoso e francês dos heróis de quadrinhos, um ícone do país. Suas aventuras se espalham em dezenas de livros, oito filmes de animação e três com atores, sendo o mais recente Asterix e Obelix nos Jogos Olímpicos. Junto com seu obeso companheiro Obelix, sempre vence os inimigos com facilidade, por causa de uma poção mágica preparada pelo druida da vila. Uderzo continuou a produzir livros dos personagens, mesmo após a morte de Goscinny em 1977, e suas aventuras foram traduzidas em todo o mundo. O sucesso de Asterix com aventuras em cima de piadas históricas e estereótipos nacionais nas versões “ancestrais” de alemães, espanhóis, ingleses e portugueses, que povoam suas histórias, reforça a identidade dos franceses, que se vêem, nos gauleses, como os heróis das aventuras. O fato de na realidade terem sido os romanos vencedores e os verdadeiros unificadores da Gália, não deixa de ser parte irônica da graça dos quadrinhos. Uma vingança simbólica de Vercingetorix contra César muitos séculos depois.
.:: Revista História Viva
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Discordo... o início da banda desenhada do Astérix começa com isto...
ResponderExcluirhttps://queensathleticclub.files.wordpress.com/2013/10/screen-shot-2013-10-02-at-8-17-05-pm.png
Pára cu nu PAL!
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