quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

A Economia Romana



Como explicar que o mundo romano, que manteve uma aparência de prosperidade financeira , embora com altos e baixos, desde unificação italiana, no apogeu da República, até Marco Aurélio, se arruinasse depois tão irremediavelmente? Não foi uma questão de personalidades. Depois de Marco Aurélio, Roma teve imperadores com grande capacidade e discernimento: os Severos, Aureliano, Diocleciano, Constantino, Juliano, etc., certamente melhores que a maioria dos imperadores da dinastia Júlio-Claudiana. Mas nenhum deles conseguiu opor um dique à decadência progressiva e fatal. Essa questão entronca com outras – 1) teria existido em Roma uma economia capitalista? 2) Seria o Estado romano economicamente viável?




A monetarização da economia é uma das características do regime capitalista. Na Antiguidade existiram “ilhotas” de economia monetária: Babilónia, Fenícia, Grécia – ou combinações de economia natural com áreas monetarizadas: Egipto (Império Novo) e o Império Persa dos Aqueménidas e, de uma forma mais alargada, o mundo helenístico.

Atenas era uma economia bastante monetarizada. A Ática, com menos de 3 mil km2, não conseguiria alimentar o meio milhão de habitantes que a povoavam no século de Péricles. Só subsistia com uma importante indústria alimentando um poderoso comércio de exportação de produtos industriais por troca com bens agrícolas (ou outros bens industriais). Quase metade daquela população era constituída por escravos.

A sucessiva ruína de todas aquelas “ilhotas” de economia pré-capitalista deve-se a vários factores.
1) Em primeiro lugar o serem ilhotas face a um mundo imenso bárbaro envolvente. A sua tecnologia mais avançada não era qualitativamente diferente de forma a assegurar-lhe uma superioridade militar decisiva e permanente sobre esse mundo;
2) em segundo lugar o facto de ter acontecido, em todos os casos, a progressiva fragilização da classe média, que fora inicialmente um dos motores da sua ascensão, mas que foi sendo eliminada pelas aristocracias dos ricos comerciantes. A existência do trabalho escravo facilitou essa fragilização e decadência;
3) a emigração, possibilitada pela abertura de vastos territórios à colonização, nomeadamente após as conquistas de Alexandre, e incentivada pelas crises políticas na cidade mãe, foi despovoando sucessivamente os grandes centros do mundo helenista, sempre que as crises sociais e financeiras os afectavam. Por todas estas razões as principais cidades gregas e helenistas passaram por períodos de ascensão, apogeu e declínio, relativamente curtos e desfasados no tempo. Atenas, Egina, Corinto, Rodes, Éfeso, Delos, etc. passaram sucessivamente por aquelas fases, com mais ou menos rapidez. Mesmo em Roma houve o progressivo despovoamento e desertificação do Latium, cuja população foi atraída quer pela vida ociosa da cidade, quer pela colonização e criação de novos municípios nas províncias.

Roma foi um caso de sucesso, apenas porque aquele ciclo foi mais longo, encontrou o caminho facilitado pela “globalização” das conquistas de Alexandre; dotou-se de uma técnica militar que embora não tivesse uma tecnologia qualitativamente diferente da dos seus inimigos, assentava num modelo de organização e disciplina que só modernamente voltou a conseguir-se.

Roma permaneceu em economia natural até à conquista da Magna Grécia (Itália do Sul – 275 AC) ou ao começo das guerras púnicas (264 AC). A partir daí, o contacto com o exterior traduziu-se na monetarização progressiva da economia. A agricultura doméstica tinha dificuldade em concorrer com a agricultura egípcia, siciliana ou africana (África proconsular, correspondente ao norte da Tunísia actual). As crises agrárias do Lácio e do resto da península foram facilitadas pela importação maciça de escravos e pelo enorme afluxo de metais preciosos decorrente das conquistas e que ficou nas mãos da aristocracia. Esta riqueza conduziu a um capitalismo especulativo e financeiro, frágil na medida em que não assentava na produção sustentada de riqueza, mas na usura e na especulação usurária.




Em Roma havia uma indústria artesanal. Mas o capital em numerário, bastante abundante no fim da república e no início do império, não se dirigiu para a indústria, porque não encontra incentivos para tal. Roma não era uma cidade industrial. Em matéria de fábricas de grandes dimensões tinha apenas uma de papel e uma de corantes. Já desde os tempos antigos que a sua verdadeira indústria era a política, que proporcionava vias muito mais rápidas para obter lucros do que o verdadeiro trabalho. A fonte principal de riqueza dos senhores romanos eram a intriga nos corredores dos poderes e o saque das províncias. Gastavam muito dinheiro para fazer carreira. Mas, uma vez atingido qualquer cargo administrativo elevado, recuperavam tudo com grandes lucros, e investiam os ganhos na agricultura. Columela e Plínio deixaram-nos o retrato desta sociedade latifundiária e dos critérios que seguia para a exploração das fazendas agrícolas.




A pequena propriedade, que os Gracos, César, e Augusto tinham pretendido restaurar com as suas Leis Agrárias, não aguentara a concorrência com o latifúndio: uma guerra ou um ano de seca bastavam para destruí-la em proveito dos grandes domínios, que tinham possibilidades de resistir. Havia alguns grandes como reinos, escreveu Séneca, trabalhados por escravos que custavam pouco, mas que tratavam a terra sem critério nenhum, e especializados na criação de gado, que rendia mais do que lavrar os campos. Pastagens de dez ou vinte mil hectares, com dez ou vinte mil cabeças, não eram raridade.

A resistência ao capitalismo residia, em primeiro lugar, na própria economia doméstica, que estava muito implantada nos hábitos. Cada grande villa tinha os seus moinhos, os seus fornos, forjas, carpintarias, oficinas de tecelagem e vestuário. Nas villas mais ricas havia mesmo ourives, pintores, arquitectos, escultores, etc.. A grande aristocracia fornecia-se nos seus domínios, baseada no trabalho de escravos ou libertos. O capitalismo moderno implantou-se porque destruiu a economia doméstica dos domínios feudais, através da revolução tecnológica, da divisão do trabalho e do embaratecimento drástico dos produtos industriais. O atraso tecnológico da antiguidade não permitiu esse desenvolvimento. Algumas ideias, como a máquina a vapor de Hieron, não tinham quaisquer possibilidades de passarem à prática, pela inexistência de uma base técnica que o permitisse. Não passavam de “trabalhos académicos”, curiosidades “filosóficas”. Sem ruptura técnica a indústria capitalista, baseada na divisão do trabalho, na especialização das tarefas e na grande produção, não consegue competir com a indústria doméstica, nomeadamente quando o poder político está nas mãos dos que detêm os domínios onde essa indústria se desenvolve.

Mas, não havendo aperfeiçoamentos técnicos, o capitalismo não se poderia desenvolver baseado na utilização de um factor de produção a baixo preço – o trabalho escravo? Houve tentativas nesse sentido, mas que não deram resultado. Em primeiro lugar um escravo tem um custo de aquisição (ou de criação, quando nasce na casa do dono) e de manutenção. Esse custo de manutenção é independente das flutuações económicas (e em altura de crise, obviamente se perde dinheiro na venda de um escravo); em segundo lugar tem uma produtividade inferior à do trabalhador livre (tem menos incentivos a aperfeiçoar-se e tem menos rapidez de execução); finalmente este tipo de trabalho indiferenciado não incentiva o aparecimento da divisão do trabalho. Portanto, o factor de produção “trabalho escravo” não era apetecível em termos de investimento capitalista. Em termos de rendibilidade deste factor de produção, ele não era competitivo economicamente. Essa situação foi admitida por Columella, que escreveu sobre as questões técnicas da agricultura, e considera o trabalho escravo como ineficiente, ponto de vista que é também admitido por Plinio.

As únicas indústrias orientadas segundo critérios capitalistas eram as extractivas. O proprietário do subsolo, teoricamente, era o Estado, que no entanto entregava a sua exploração, por concessão, aos particulares. Os custos de produção eram mínimos, porque o trabalho nos poços era confiado exclusivamente a escravos e a forçados, aos quais não se devia pagar nenhum salário e que não era preciso segurar contra qualquer acidente. Mas as minas foram exploradas até à sua exaustão (de acordo com as condições técnicas de então), e nos últimos séculos do Império a sua importância decaiu, nomeadamente no que se refere aos metais preciosos, base do numerário. A estatização da indústria mineira, medida tomada por Augusto numa tentativa para superar a diminuição da produção mineira e receber directamente os lucros da extracção, apenas acelerou o seu declínio.




Os escravos, bastante numerosos em Itália no período de transição entre a república e o império (constituindo cerca de 30% a 35% da sua população), eram frequentemente utilizados mais por ostentação que pela sua rendibilidade. Com o fim das conquistas deixou de haver o afluxo de escravos até então existente e os próprios mecanismos sociais – baixo saldo demográfico, alforrias (muito numerosas por testamento), etc. encarregaram-se de fazer diminuir o peso dos escravos na sociedade romana. O colonato e outros regimes laborais substituíram o trabalho escravo que nos últimos dois séculos do império seria insignificante.




Um outro obstáculo foi que Roma, a capital do império, era também a capital da ociosidade. A população vivia numa semi-ociosidade. A distribuição livre de cereais pelos proletários romanos que, desde Clodio, em 58AC, se fazia gratuitamente, foi modificada por César e convertida num “Rendimento Mínimo Garantido”, pois foram excluídos das listas aqueles que tinham meios mínimos de subsistência. Os 320 mil romanos até então alimentados pelo Estado ficaram reduzidos a 150 mil, fazendo-se, além disso, uma revisão anual dos contemplados. Durante o seu curto governo conseguiu igualmente César estabelecer nas províncias cerca de 80 mil colonos, quer veteranos das suas legiões, quer parte da plebe assistida pela anona. Todavia após a morte de César aquele número subiu pouco a pouco, e o número dos que viviam permanentemente da anona manteve-se sempre flutuando à volta de 200 mil, apesar das distribuições diversas de terras nas províncias aos proletários romanos. Essa distribuição gratuita de víveres adquiridos no Egipto, Sicília e África proconsular tinha como contrapartida o dinheiro que Roma sacava às províncias. O comércio romano baseava-se na espoliação indirecta – reembolsava as importações com os impostos com que taxava as províncias. Roma era uma cidade de pedintes.

Subvencionar e distrair a população de Roma tornou-se, depois de César, uma necessidade política. Além das distribuições gratuitas de cereais, os jogos constituíam um dos serviços públicos mais importantes do Estado. Os dias feriados passaram de 65, na época de César, para 135 no tempo de Marco Aurélio, e depois para 175 dias. A partir desta época pode dizer-se que a população de Roma passava a sua vida nos teatros, anfiteatros e no circo. O circo era o seu templo. No resto do tempo discutia-se os jogos do dia anterior ou os do dia seguinte. Este sistema manteve-se mesmo após o fim do Império do Ocidente, até que a destruição de Roma na sequência da reconquista da Itália, no tempo de Justiniano, despovoou a cidade (554). Foi para ganhar popularidade que Cómodo descia à arena (aliás, este facto e o nome do pai dele, são as únicas coisas verídicas no recente filme Gladiador). O mais grave dos jogos era o de promover a crueldade, a luxúria e a cobardia na populaça. Graças a este Estado Providência, a população vivia e divertia-se, com um trabalho muito moderado ou mesmo nulo. A plebe romana descuidada, apenas se interessava pelos seus prazeres e, depois de cristã, pelas controvérsias religiosas. As grandes ocorrências políticas passaram por esta populaça amorfa e inerte, como nuvens longínquas. Esta espantosa atonia da população, o amolecimento da sua vontade é o reverso deste sistema e está em completo contraste com o interesse pela coisa pública, ainda evidente no tempo de César, como se percebe pela reacção da plebe romana à arenga de Marco António nos funerais de César.




O comércio estava na mão de não romanos. Quando se refere a importância de italianos nas rotas comerciais do império, ou os 80 mil mercadores massacrados por ordem de Mitrídates, são quase sempre italianos do sul, que nos séculos anteriores haviam feito parte do mundo helenístico (Magna Grécia). O comércio estava nas mãos dos povos orientais – sírios e judeus. A cidade mais activa no tempo do Império era Alexandria, que tinha como hinterland o Egipto, que era a província mais habitada do império (7 milhões de habitantes - 12% do império). Outra cidade com uma actividade económica importante era Antioquia da Síria. Roma seria apenas um Moloch consumidor e estéril.




A agricultura também não era apetecível como base de uma economia capitalista. A auto-suficiência dos grandes domínios e o facto de Roma ser abastecida pelo Estado não permitia a exploração dos latifúndios numa base capitalista. Os latifúndios foram os antecessores da propriedade feudal, nunca a base para um desenvolvimento capitalista. A rarefacção dos escravos e o facto dos libertos e colonos, sem outros meios que os seus braços, serem a nova base do trabalho agrícola, facilitou a sua passagem a servo de gleba – a protecção do senhor em troca de ficar ligado permanentemente à terra.
Portanto Roma constituiu uma sociedade cuja classe superior era de uma enorme riqueza, obtida directa ou indirectamente através da espoliação de todo o mundo antigo. As riquezas produzidas durante séculos pelas civilizações da Antiguidade Oriental e Greco-helenística foram drenadas para Roma. Todavia a base sustentável da riqueza não é o capital-moeda ou os tesouros artísticos, mas sim o capital produtivo, investido em meios de produção. Essa base não existiu em Roma. O aparente fulgor do Alto Império (de Augusto a Marco Aurélio) escondia uma decadência progressiva e inelutável, pela inadequação da base económica e das instituições, que emergiu como uma catástrofe logo que a exaustão das minas e o deficit permanente das transacções com o exterior levassem ao colapso da economia monetária. Uma das razões da conquista da Dácia, por Trajano, foram as minas de ouro aí existentes.

Plínio, século e meio depois de César, no tempo de Trajano, queixava-se das importações sumptuárias do Oriente (Índia, Pérsia, etc), sem contrapartida de exportações, que, segundo ele, ascenderiam a 100 milhões de sestércios por ano (cerca de100 milhões de €, à cotação actual do ouro, ou 5 vezes mais em termos de paridade de poder de compra, segundo estimei) o que é de facto uma soma avultada (cerca de 5% da despesa pública anual ou 0,6% do PIB romano segundo estimativas que fiz então). Não é possível, durante dois séculos, manter esta sangria em numerário, sem contrapartidas de criação interna de riqueza. No caso de Roma, a dívida com o exterior levou ao esgotamento do numerário e à cunhagem de moeda de teor cada vez mais baixo (o antoninianus chegou a ter um teor de prata de menos de 2%! – não passava de uma moeda de cobre e chumbo, com um revestimento de prata). A reforma monetária de Diocleciano tentou inverter a situação, mas foi sol de pouca dura, até porque foi acompanhada de uma estatização sufocante da actividade económica e da vida social que levou ao colapso do império, mais por implosão interna, que por ação dos bárbaros.

Neste entendimento, as sucessivas crises políticas que ocorreram a partir do fim do reinado de Marco Aurélio e até Diocleciano, com o seu cortejo de guerras civis, invasões bárbaras, epidemias, confiscações, etc., levaram a uma calamitosa decadência económica, com a desaparição do numerário, aniquilamento do comércio e regresso à economia natural. Roma havia atingido uma condição económica que tornava quaisquer leis impotentes e ineficazes, O Império Romano nos séculos III e IV não conseguia sustentar os seus habitantes, manter a sua administração e pagar às suas tropas. A base económica da Idade Média havia começado.

Portanto, a economia romana não foi uma economia capitalista, mas o grau de monetarização que atingiu e a grande extensão atingida pelo comércio que a “globalização” romana permitiu, criaram formas contratuais capitalistas. Percebe-se isso nas doutrinas desenvolvidas pelos juristas romanos sobre a regulamentação das relações económicas. Eles construíram uma ordem jurídica da propriedade privada, cujos direitos não tinham coacções extra-económicas, e levaram a liberdade contratual a um ponto que, em muitos aspectos, se mostra perfeitamente apropriada às condições do capitalismo moderno. Os traços basilares do Direito Romano reflectem a característica predominantemente individualista da estrutura económica romana. Esse individualismo sem limites considera lícito o próprio jus abutendi (Direito de abusar; isto é, direito de dispor da propriedade sem qualquer restrição), contrário, por exemplo, aos princípios éticos de Aristóteles.

Provavelmente por isso, Aristóteles foi a base do pensamento económico medieval cristão e do pecado do lucro, enquanto o Direito romano foi a base jurídica onde se ergueu o capitalismo.

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Um comentário:

Karol Franco disse...

Uau! Que demais. Obrigada, me ajudou muito no meu trabalho rs. Curti o blog. Parabéns!