domingo, 17 de janeiro de 2010

Famílias nada tradicionais

Na Roma antiga, as uniões civis não tinham o caráter sagrado que assumiram após o surgimento do cristianismo. A profusão de divórcios e casamentos dos nobres da época deixaria corados os defensores dos bons costumes

Os romanos não tinham um termo específico para designar o que chamamos “família”. A palavra familia englobava todos aqueles que viviam sob a autoridade do pater familias, crianças e adultos, homens e mulheres, livres e escravos. Empregavam também a palavra domus (casa) que representava todos que moravam em uma mesma habitação.

Em Roma existiam três estruturas distintas: a família nuclear, a tríade pai-mãe-filho; a família ampliada – várias gerações que coabitavam sob a autoridade do patriarca; e finalmente a família múltipla, que congregava pessoas e outras famílias nucleares unidas por contratos de casamento.

Nas classes médias e populares as famílias eram muito mais estáveis do que na aristocracia. Nas inscrições funerárias há elogios freqüentes às mulheres que viveram em paz com seus maridos durante 20, 30, até 60 anos. Mas também existiram famílias reconstituídas. A morte de um dos cônjuges levava o sobrevivente a assumir uma nova união. Alguns documentos mencionam mulheres que foram casadas várias vezes.


As mulheres romanas eram mais independentes do que fazem
crer as representações sobre o período/ A partida de Coriolano,
óleo sobre tela, R. Postiglione, século XIX, coleção particular.

Já nas classes dominantes, o casamento era equivalente a um acordo político. Não significava uma aliança afetiva, mas obedecia, na maior parte das vezes, às flutuações táticas das forças atuantes. Muitos dos homens (e das mulheres) influentes de Roma tiveram várias uniões. Sylla, Pompeu e Antônio esposaram cada um cinco mulheres; os imperadores Calígula e Cláudio se casaram cada um quatro vezes. Entre as mulheres, o recorde parece pertencer a Vistilia, mãe do grande general da época de Nero, Corbulão: ela teve sete filhos de sete maridos em um período de 20 anos.

A mulher podia pedir o divórcio sem ter de se justificar. O divórcio tornou-se uma prática tão banal na alta sociedade romana que Sêneca estigmatizou suas concidadãs: “Elas se casam para se divorciarem, e se divorciam para se casarem”. Messalina aproveitou a ausência do marido, o imperador Cláudio, para se declarar divorciada e celebrar seu casamento com o amante Silius.

Algumas vezes essas uniões firmadas em uma contingência política provocaram situações escabrosas. Pompeu esposou em terceiro matrimônio a nora de Sylla, Aemilia, que estava grávida de seu primeiro marido, Acilius Glabrio. Mas isso não impediu que ela se instalasse na casa de seu novo marido. Pouco depois, morreu ao dar à luz um menino, que foi imediatamente transferido para a casa de seu pai natural. Augusto, cuja mulher Escribônia estava grávida, apaixonou-se loucamente por Lívia, que também estava grávida, e era casada com Nero. Augusto esperou que Escribônia desse à luz sua filha Júlia para repudiá-la no próprio dia de seu parto. Em seguida, casou-se com Lívia que deu à luz em sua casa.

Desde o fim da República, a antiga fórmula de casamento que submetia a esposa ao marido caíra em desuso. A mulher casada continuava legalmente independente, até mesmo no campo financeiro. O dote, que consistia em moedas, jóias, prataria, mobiliário, terras e escravos, era confiado ao marido, mas somente sua renda podia ser empregada para a vida do casal. Em caso de divórcio ou viuvez, a mulher recuperava integralmente seu dote. Ela também tinha o direito de legar seus bens a quem desejasse. Só quando o adultério era o motivo do divórcio o marido ficava com uma parte do dote.


As separações entre casais eram comuns, e
geralmente as crianças ficavam com o pai.

As crianças eram as que mais sofriam com as sucessivas uniões de seus pais. Em caso de divórcio, geralmente elas eram separadas da mãe, ficando sob guarda paterna. As madrastas deviam garantir a educação de seus enteados, muitas vezes tão jovens quanto elas. Os irmãos e irmãs nascidos de um mesmo pai eram educados juntos, mas não mantinham vínculos com os filhos que suas mães tinham de outras uniões.

PIOR PARA AS CRIANÇAS

As crianças órfãs de pai se encontravam em uma situação ainda pior: deveriam ficar com a família paterna ou poderiam se unir à de sua mãe? Com 3 anos, o pequeno Nero perdeu seu pai enquanto sua mãe estava exilada em Roma. Morou com sua tia paterna, Domitia Lépida, que se desinteressou da criança e a confiou a dois escravos, um dançarino e um barbeiro. Quando Agripina retornou do exílio, casou-se com Sallustius Crispus, e em seguida com o imperador Cláudio, trazendo o filho para morar com eles. Mas a sorte de Nero não melhorou: novamente sua educação foi entregue a dois escravos.


O camafeu mostra a curiosa família de Tibério (2) que,
sendo filho de Lívia (3) com Nero, foi adotado por
Augusto (1), tornando-se seu sucessor à frente do Estado.

No entanto, há casos de reagrupamentos familiares mais felizes. A irmã do imperador Augusto, Otávia, cuidou ao mesmo tempo de seus próprios filhos e dos que seu marido Antônio teve de outras uniões. A “família” de Otávia se compunha de três filhos de seu primeiro casamento, de suas duas filhas nascidas de Antônio, dos dois filhos de Antônio e de Fúlvia e dos três filhos de Antônio e Cleópatra.

O concubinato era uma forma de casamento inferior entre uma mulher livre que vivia com um homem sem ser sua esposa. Era proibido ter ao mesmo tempo uma esposa e uma concubina. Mesmo assim, o concubinato era freqüente, sobretudo entre escravas libertas e seus antigos donos. Muitas vezes os homens das classes superiores uniam-se a uma concubina após terem sido casados regularmente uma ou duas vezes. Após a morte da mulher, Faustina, Marco Aurélio foi pressionado pelas grandes famílias romanas para escolher uma nova imperatriz. Mas ele preferiu ter como concubina a filha de um intendente de Faustina, pois não quis, segundo disse, impor uma madrasta a seus filhos – ele tinha 12!

Outra forma de união, o contubernium ou “coabitação”, ocorria quando um dos membros era de origem servil. Era, em particular, o caso das uniões entre escravos, que podiam ser tão estáveis quanto os casamentos dos homens livres. Além disso, sempre existiram relações entre o patrão e as mulheres escravas, consentidas ou não. O mesmo acontecia entre mulheres livres e homens escravos.

A criança nascida dessas relações não era reconhecida pelo pai. Seguia a condição da mãe: o filho de uma escrava era escravo, de uma mãe livre, era livre. O pai não tinha nenhuma obrigação de alimentá-la e a excluía de sua herança. O único modo de o pai obter o pátrio poder era adotando-a.

O pater familias tinha o direito de modificar a composição da família suprimindo as crianças que não desejava ou adotando um filho para sucedê-lo. Muitas razões, em particular para os pobres, que enfrentavam dificuldades para alimentar muitas bocas, podiam levar o pai a não reconhecer um filho, mesmo legítimo. Isso era praticado em todas as classes sociais e atingia principalmente as filhas. O futuro imperador Cláudio abandonou sua filha Cláudia, pois suspeitava que ela era fruto dos amores adúlteros da mulher com seu escravo liberto Boter. Uma criança abandonada podia ser recolhida para ser adotada. Na maioria das vezes, no entanto, estava destinada à escravidão. Essa prática só foi revogada no século IV.

Uma família precisava de um filho homem para receber em herança os bens do pai e garantir a permanência do culto das divindades da casa. Na ausência de filhos, era necessário recorrer à adoção de um rapaz que, na maioria das vezes, já tivesse atingido a idade adulta. O escritor Plínio, o Jovem, era filho adotivo de seu tio materno, Plínio, o Velho. A adoção era também o meio mais seguro para os imperadores garantirem sua sucessão. Alguns meses antes de seu assassinato, Júlio César adotou o neto de sua irmã, Caio Otávio, o futuro imperador Augusto. Tibério, Trajano, Adriano, Antônio, o Piedoso e Marco Aurélio eram filhos adotivos dos príncipes que os precederam. Nos meios mais populares, os homens que não tinham descendentes adotavam, muitas vezes, um de seus escravos libertos.

Por múltiplas razões, a família nuclear em Roma estava ameaçada por rupturas e reconstituições constantes. As crianças eram as principais vítimas dessa situação. Felizmente para elas, a estabilidade era garantida por aqueles a quem eram confiadas, as amas e os nutritores (pais babás) que não as deixavam durante todo o período da infância. Eles eram chamados pelas crianças de tata (papai) e mama (mamãe), e muitas vezes esses pais substitutos ficavam toda a vida ao lado de seus antigos protegidos.

O surgimento do cristianismo modificou a concepção romana de família e rompeu com as práticas matrimoniais do mundo pagão. Apoiandose em textos dos Evangelhos (“Que o homem não separe o que Deus uniu”) e das epístolas paulinas (“Que a mulher não se separe de seu marido... e que o homem não repudie sua mulher”), os Pais da Igreja declararam a obrigação da monogamia e a indissolubilidade do casamento, proibindo o divórcio.

Durante o primeiro milênio, o casamento permaneceu um assunto no qual a Igreja não intervinha. Foi somente em 1215, quando do concílio de Latrão IV, que o casamento se tornou o sétimo sacramento da Igreja católica e se transformou em um ato público efetuado em uma igreja diante de um religioso.

No entanto, com a queda do Império Romano no início do século V, o direito germânico se sobrepôs ao romano e introduziu novas práticas entre as famílias. A poligamia era muito arraigada entre os germânicos: ao lado da esposa legítima, geralmente o homem tinha esposas secundárias, as friedlehe (promessas de paz) e concubinas escravas.


Cenas da vida de um general romano; Até o ano 1000 a
poligamia ainda era comum, apesar do esforço da Igreja em
difundir a monogamia e a indissolubilidade do casamento.

Carlos Magno teve cinco esposas legítimas e ao menos quatro concubinas oficiais. Todas essas mulheres lhe deram 17 filhos ou mais. Esse pai tão afetuoso nunca se separou de sua numerosa prole: quando viajava, todos os filhos cavalgavam a seu lado e as filhas seguiam acompanhadas por guardacostas. Carlos Magno amava tanto suas filhas que não conseguia decidir- se a concedê-las em casamento. Desse modo, permitiu que se tornassem friedlehes de amantes que moravam com elas. A mais velha, Rotrude, vivia com Orgon, duque do Maine, com quem teve um filho. No palácio de Aix-la-Chapelle, coabitavam, sob a autoridade de Carlos Magno, várias mulheres e concubinas, filhos legítimos e bastardos, amantes das filhas, netos, sem esquecer sua mãe Berta, que morreu com idade avançada. Todo esse pequeno mundo viveu mais ou menos em harmonia, sem suscitar reprovação pública especial.

Podemos nos perguntar como, em uma época em que o cristianismo determinava a indissolubilidade do casamento, as separações eram tão freqüentes. Os divórcios, muitas vezes decididos para que se concluíssem alianças mais vantajosas, eram disfarçados em anulações por esterilidade ou adultério da mulher. Outros casais utilizavam habilmente “o obstáculo proibitivo do parentesco”: o direito germânico proibia o casamento entre pessoas até o sétimo grau de parentesco. Não era muito difícil provar que se tinha uma ligação de parentesco distante com a mulher de que se buscava a separação.

As crianças nascidas de uniões paralelas tinham o status de bastardos e eram afastadas da herança paterna, mas viviam com o pai. Essa ilegitimidade não impedia que muitas delas fizessem uma bela carreira. Carlos Magno nasceu quando a mãe, Berta, era apenas a concubina de seu pai Pepino, o Breve. Foi legitimado mais tarde, quando os dois se casaram.

Durante a segunda metade do primeiro milênio, enquanto a religião cristã impunha a monogamia e a indissolubilidade do casamento, a poligamia ainda era comum. A partir do século X, essa situação tornou-se pouco a pouco obsoleta. No final do primeiro milênio, de fato, a Igreja ocupou uma posição preponderante na sociedade e impôs seus princípios primeiramente ao povo, depois à nobreza.

.:: Revista História Viva


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