quarta-feira, 28 de abril de 2010

Adrianópolis: a batalha que valeu por uma guerra

Ao serem derrotados pelos godos em Adrianópolis, os romanos abriram a porta do império para a invasão de outros bárbaros


Valente e seus homens na última fase da Batalha de Adrianópolis.

Em 378, o exército romano sofreu uma de suas mais incríveis derrotas, que entrou para a história como a Batalha de Adrianópolis. Em poucas horas de uma abrasante tarde de 9 de agosto, 17 mil dos melhores soldados do império perderam a vida na região semidesértica da Trácia, província romana ao sul do Danúbio. Foi uma verdadeira carnificina que não poupou nem mesmo a vida do imperador do Oriente, Flávio Valente, cujo corpo nunca mais foi encontrado. Perdendo apenas uma batalha, Roma parecia ter perdido na verdade uma guerra inteira. Seu exército nunca mais se recuperou e os visigodos obtiveram o direito de viver com suas próprias leis no interior dos domínios romanos, formando um estado dentro do estado. Os bárbaros chegaram a acumular tanto poder que mandaram e desmandaram na política do império, nomeando um imperador em 409 e saqueando Roma em 410. Era o começo do fim da maior potência da Antiguidade.

Dois anos antes do desastre de Adrianópolis, os visigodos cruzaram a fronteira romana com a autorização do próprio imperador Valente. Os germanos só conseguiram essa valiosa permissão quando se viram encurralados por bárbaros ainda mais ferozes, os hunos, que chegavam da Ásia para varrer o norte da Europa. Aterrorizados, milhares de homens, mulheres e crianças se puseram, então, às margens do Danúbio para implorar, aos gritos e com os braços estendidos, asilo aos romanos. Em troca, Fritigern, o chefe dos visigodos, prometia fornecer homens para as legiões. Diante da proposta, Valente aceitou os imigrantes. Afinal, a Trácia sempre fora um grande quintal, com terras demais e homens de menos.
Uma vez dentro do império, porém, o povo gótico logo se desentendeu com mercadores da região, interessados apenas em explorar aquele rebanho humano. Os negociantes foram acusados de cobrar os olhos da cara por um prato de comida e de até mesmo substituir filé bovino por carne de cachorro. Cansados de tanta exploração, os visigodos seguiram o ditado “com um amigo desses ninguém precisa de inimigo” e se revoltaram, estuprando mulheres e destruindo vilarejos do interior romano.

Quando soube desses estragos, o imperador Valente convocou 25 mil de seus melhores legionários e partiu para Adrianópolis, uma cidade a 13 quilômetros do acampamento dos inimigos. Em seguida despachou espiões para saber quantos godos compunham o exército de Fritigern. Os agentes contaram o que viram: cerca de 10 mil soldados. No entanto, não contaram o que não viram: junto com tal força havia uma poderosa cavalaria dos ostrogodos, outro povo germânico, que tinha saído do acampamento dias antes em busca de comida. Desavisado do perigo, Valente ordenou, na alvorada de 9 de agosto, que os romanos marchassem em direção ao acampamento inimigo sob um sol escaldante que, nos dias de hoje, nessa época do ano, verão no hemisfério norte, chega a 40ºC. Fritigern, ardilosamente, conseguiu adiar a batalha, enviando mensageiros da paz. O bárbaro sabia que o tempo jogava a seu favor, já que a cavalaria ostrogoda deveria aparecer a qualquer momento.

Foi o que aconteceu. A batalha começou quase no mesmo instante em que chegaram os temíveis cavaleiros ostrogodos, “descendo as montanhas como raios de tempestade”, segundo o historiador e ex-soldado romano Ammianus Marcellinus. Os cavaleiros bárbaros desbarataram a vulnerável cavalaria romana, que abandonou a infantaria à própria sorte. Com isso os godos fizeram um cinturão mortal em torno dos soldados imperiais. Um cinturão tão apertado que os romanos mal podiam sacar das espadas. “Naquele momento tais eram as nuvens de poeira subindo do chão que mal dava para ver o céu, onde ecoavam gritos horríveis. Por essa razão, os dardos dos bárbaros atingiram o seu alvo sem que ninguém pudesse se desviar. O chão ficou coberto de sangue, fazendo escorregar os pés de nossos soldados. Com tanto desespero, tentaram se defender e alguns mataram, sem querer, seus próprios companheiros”, relata Ammianus.

Coberto de poeira e sangue, Valente foi abandonado por seus guardas pessoais e acabou ferido por uma flecha. Cambaleante, o imperador procurou refúgio na ala dos lanceiros, ainda minimamente organizados, mas não conseguiu ser salvo. Ninguém jamais reencontraria o corpo do imperador. Mais tarde surgiu a versão de que Valente, já ferido, foi deslocado por alguns oficiais até uma cabana próxima, rodeada em seguida pelos bárbaros. Diante de uma presa tão fácil, os godos decidiram atear fogo ao casebre. Valente teria sido consumido pelas labaredas.

O balanço da batalha de Adrianópolis foi extremamente negativo: além do imperador, 17 mil dos melhores soldados, muitos capitães, 35 tribunos, dois altos oficiais do palácio real e dois generais morreram no combate. Na noite daquele 9 de agosto, durante a volta para casa, “muitos legionários semivivos bloquearam as estradas por não resistirem aos ferimentos. E inúmeros cavalos mortos foram empilhados, enchendo a planície com seus corpos”, lamentou Ammianus. Para o império, o desastre de Adrianópolis arranhou o moral romana e debilitou o exército. “Foi uma derrota militar catastrófica – a pior em séculos – e que agravou a já existente carência de homens para a formação do exército. Além disso, depois dessa batalha o prestígio romano nunca mais foi o mesmo”, explica o especialista em império romano tardio Alan Dearn, pesquisador da Universidade de Macquarie, da Austrália.

Mesmo com o fim da batalha, os godos continuaram dando trabalho para os romanos, até que Teodósio, o novo imperador do Oriente, agiu menos como general do que como diplomata, assentando os invasores no território por meio de um tratado bem generoso, proposto em 382. Os bárbaros viveriam com sua própria legislação em terras romanas e receberiam, de quebra, um subsídio anual para subsistência. Em troca, forneceriam homens para as legiões romanas, com a ressalva de que seus comandantes fossem sempre godos. “Esse tipo de assentamento ajudou a formar nos bárbaros um senso muito maior de unidade e identidade. E também lhes deu maior consciência de suas habilidades para influenciar a política romana”, diz Dearn. De fato, a autonomia legislativa e o controle do exército permitiram que o sucessor de Fritigern, Alarico, acumulasse tamanho poder em suas mãos que chegaria a escolher um imperador do Ocidente em 409 e a saquear Roma em 410. Com esses atos, os godos foram os responsáveis pela destruição das primeiras colunas do império. Os outros povos bárbaros demoliriam as demais.

Reinos góticos

Originários da atual Escandinávia, os godos migraram em 230 d.C. até o mar Negro, onde se dividiram em duas correntes. Os que marcharam a leste se tornaram os ostrogodos (em alemão, “Ost” quer dizer oriente). Os que peregrinaram a oeste viraram os visigodos (“West” significa ocidente). Assim que esses rudes bárbaros entraram em contato com as fronteiras romanas, se transformaram. Segundo o historiador inglês Perry Anderson observou, em Passagens da Antiguidade ao Feudalismo, “a hierarquia social, a disciplina militar e a remuneração monetária, tudo isso eram lições aprendidas no estrangeiro e logo assimiladas pelos chefes locais”. De todos os povos bárbaros, os godos foram os primeiros a criar um reino autônomo dentro do Império Romano. Depois, em 475, fundaram na atual Espanha o primeiro reino bárbaro da Idade Média. Já em 493, criaram outro reino na Itália. Com uma população dez vezes menor que a dos habitantes romanos, impuseram uma espécie de apartheid para assegurar o domínio político. Os locais freqüentavam a igreja católica e eram julgados segundo as leis romanas. Já os bárbaros iam a igrejas arianas (outra vertente do cristianismo) e eram sentenciados em seus próprios tribunais. Até mesmo o casamento era proibido entre eles. Mas, aos poucos, eles se aproximaram da herança de Roma. Afinal, a burocracia, o tipo de moeda, a organização das cidades e o alfabeto latino tinham dado às populações nativas uma civilização material necessária para o domínio gótico.

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